Escamas Azuis: o que significa o silncio? No ano de 1978 quando organizou a exposio Ma: Espace Temps du Japon em Paris o arquiteto japons Arata Isozaki almejava apresentar o Japo moderno ao Ocidente diferenciandose dos esteretipos anteriores de um Japo Clssico cujo foco era em um imaginrio composto por gueixas samurais katanas e afins. Para tanto o pas foi reapresentado ao mundo atravs de um conceito singular e enigmtico o Ma. As obras eram orientadas sob a ideia de uma apreciao corporal no espaotempo com a performance de cantores danarinos atrizes fotgrafos entre outros. Originalmente o Ma detinha a ideia de um espao vazio delimitado por quatro pilares no qual h a possibilidade de descida e apario do divino. Por sua vez o ideograma Ma formado pela juno de dois caracteres cujas representaes so respectivamente a do Porto e do Sol . Nesse sentido constrise semanticamente a ideia de um entreespao constitudo por duas portinhola atravs do qual se entrev o sol. Em seu artigo Ma a esttica do entre Michiko Okano ressalta como o conceito do Ma permeia o senso comum japons e por esta razo um conhecimento sabido porm de difcil conceituao visto que a sua manifestao pode ser observada no cotidiano no espao branco no desenhado em uma pausa numa conversa em uma silncio antes de uma nota musical e indo at a intermediao entre conceitos como divino e profano vida e morte. A partir disso o Ma abarca um entendimento para alm de uma lgica binria de um ser e noser que opera no dualismo no qual h a impossibilidade de uma coisa ser ela mesma e outra coisa. simultaneamente ou mesmo nenhuma das duas. Por isso uma das leituras deste conceito de um intervalo um entreespao ou espao intermedirio. Dessa forma neste artigo irei tentar identificar a manifestao da esttica do Ma no mang escrito e desenhado por Yoko Komori Escamas Azuis. Ento armado deste conceito busco compreender o modo como a autora tenta captar o silncio bem como a utilizao do espao em branco e das pausas a fim de transmitir a morosidade contida tanto numa cidade beiramar quanto nas relaes interpessoais. Escamas Azuis: O Segredo da Cidade de AreiaAoi Uroko to Suna no Machi no original publicado em dois volumes pela JBC no ano de 2023 narra a histria de Aoyama Tokiko uma pradolescente de 11 anos que se v solitria e perdida entre a separao dos pais e a mudana de uma grande metrpole Tquio para uma cidadezinha interiorana. Cidade essa que terra natal de sua me na qual Toki aos 4 anos quase morreu afogada ao mar porm ela acredita que foi socorrida por um trito. De volta a esse lugar do passado Tokiko tentar desvendar se sereianos realmente existem e quem sabe finalmente agradecer por ter tido sua vida salva. A comear pela cidade vou tentar observar como que se pe a construo do silncio a fim de alcanar uma espcie de ethos da vida litornea. Para isso ficar mais compreensvel ateno aos quadros abaixo. Aqui observase um procedimento esttico de dar forma vida interiorana no litoral a partir de quadros vazios situaes e momentos de noao ou cenas vulgarmente conhecidas por no mover a trama construdos pela autora. A titulo de exemplo o captulo 5 em que h uma chuva atravs de toda a cidade. Para traduzir esse simples fenmeno h dezenas de quadros representativos de chuva: goteiras sobre telhas de edifcios gotas dgua sobre guardachuvas vistas panormicas da cidade tomada pelo temporal cenas estas que so quadros inteiros ou quadrinhos na tela. Dessa forma essa cenas servem como uma espcie de intervalo em que ele ata e formaliza uma respirao e uma flutuao isto criase a partir desses momentos lentos e contemplativos uma dilatao no apenas do tempo mas tambm do prprio espao. Esses quadros vazios na realidade como posto por Michiko em seu livro Ma: EntreEspao da Arte e Comunicao no Japo so espaos radicalmente disponveis. Essa diferenciao surge no entendimento ocidental do que seria o vazio. No imaginrio ocidental o termo vazio diria respeito ao nada tanto no sentido da visibilidade tanto da fisicalidade. No mundo asitico inspirado no budismo este vocbulo no estaria ligado negao de qualquer contedo uma vez que h o reconhecimento da coexistncia de opostos e da possibilidade de um espao vazio ser pleno. Entendese ento estes espaos como passveis de diversos tipos de dinmicas e atravessamentos de conceitos diametralmente opostos como nada e tudo. Portanto essa coletnea de quadros constituem um devir uma espcie de trnsito dentro do escopo da trama visto que no parecem efetivamente avanar a trama ou revelar um aspecto/detalhe importante mas sim distender tempo e espao a fim de alcanar uma sensao uma emoo. Esses momentos cabe dizer tambm orientam a narrativa so a histria. Em seguida quero me ater a razo pela qual o pai de Tokiko decide seguir rumo a cidade natal de sua esposa e tambm como a dinmica da relao entre pai e filha. Com efeito igualmente pretendo elaborar outra dimenso do silncio a distncia e a incapacidade de se expressar. Sem expor detalhes o quadrinho deixa no ar que a relao entre marido e mulher est beira do colapso por isso o pai acha por bem se mudar para esse vilarejo na esperana de que a nostalgia traga a sua amada de volta para assim restabelecer uma suposta harmonia de volta ao relacionamento. Por sua vez as interaes de Tokiko com seu pai so permeadas por silncios desconfortveis nos quais a falta de entendimento de quem ele realmente mina a possibilidade de uma dinmica dialgica. Isto como possvel tecer uma conversa quando sequer h conhecimento prvio de quem o interlocutor e o que ele faz. Com isso a ausncia da me evidencia um grande espao vazio entre estes dois sujeitos. Junto a me Tokiko conversava ria trocava experincias e principalmente buscava conforto para os momentos ruins e desafiadores. Toki agora se encontra em um mundo completamente novo em que j h uma cultura estabelecida com rituais dinmicas e regras distintas os colegas de escola por exemplo j tm seus grupos formados e brincadeiras favoritas. Da nossa protagonista precisa lidar com o dificuldade de se relacionar com o desconhecido medida que o conhecido ru silenciosamente. Para o lado do pai h um algo em suspenso um nodito implcito que em partes explica essa relao to distante. Primeiro tambm o pai precisa lidar com esse ambiente novo e o divrcio porm enquanto adulto h toda uma carga de responsabilidades para com sua filha. Esta ferida silenciosa foi destacada no momento em que pai e Toki foram fazer compras de materiais escolares: ao segurar as sacolas sozinho a mo do genitor estava com uma intensa vermelhido. Embora com com poucas aparies dele essa cena revela as presses sob os ombros dessa figura paterna solitria. Agora irei dar nfase condio psicolgica/emocional e nos dispositivos que a autora lana mo para demonstrar a sensao de abandono e deslocamento de Toki. Em dois momentos de dilogo com um dos personagens centrais Narumi Yousuke alerta a protagonista a no sair falando por a sobre sereianos advertindoa de que ela pode ser ostracizada em outra conversa posterior o jovem relata como todos temos um lado obscuro em que escondemos nossos segredos e sentimentos considerados por ns e/ou pela sociedade como inadequados. Esta advertncia e desabafo so dois pontos importantssimos para compreender o arco de Tokiko ao longo de todo o quadrinho. Primeiro a partir desse tabu acerca da existncia ou no de sereias e trites constrise entre eles situaes em que o silncio entrevem. H uma lacuna na comunicao causada pela falta de informaes. Yousuke diferentemente de Toki ctico em relao a sereias existirem muito por conta de seu passado. H 4 anos o irmo de Yousuke morreu afogado sem ter o corpo encontrado ento por isso ele at hoje procura rastros dos restos mortais do irmo e tem uma viso orientada por evidncias ele precisa ver o corpo do ente querido desaparecido para elaborar melhor o processo do luto. Nesse sentido h um conflito de crenas entre ambos o que acarreta em um afastamento uma vez que Narumi nunca revela suas verdadeiras emoes e pensamentos amiga. O mang ento compe algumas cenas em que Yousuke parece abrir a pouca para falar mas se detm. Crispao o ato de contrairse encolherse. Yousuke parece paralisarse diante de possveis interaes com Toki h sempre um espao e um silncio entre os dois ocasionado pelo nodito e pela diferena de agir diante da dvida e da possibilidade. Com isso constituse ento locais de hesitao em que a vontade de dizer e se revelar parece nunca vir superfcie. Aoyama Tokiko uma pradolescente cuja vida interrompida tanto pela separao dos pais quanto pela mudana de sua antiga cidade para uma nova uma sujeita em deslocamento e por isso em constante sensao de despertencimento e melancolia frente s atuais mudanas de sua vida. Para tanto a autora Yoko Komori utilizase da esttica do Ma a fim de dar forma s emoes e sentimentos da protagonista. No que tange ao despertencimento no gibi h uma srie cenas nas quais Toki est beiramar observando o bater das ondas em silncio ou mesmo em uma sequncia sem falas dela se deslocando at a praia sozinha. Essa solido indica uma ausncia significativa de laos uma vez que esses momentos so antes de ela se integrar ao grupo de sala. Para alm disso estas cenas apontam para uma autorreflexo e de certa forma uma plenitude nesse vazio. Sem a presena do Outro Tokiko pe os ps na areia sente aquele lugar como uma parte constitutiva de si mesmo medida que reconhece no mar um territrio de descobrimento. Simultaneamente essas cenas de Toki beiramar ilustram melancolia e contemplao. Como uma metfora visual para a depresso ela afoga em si mesma desorientada pela tempestade de acontecimentos que a acometem na mesma medida no entanto o oceano serve como local de meditao. Interessantemente no contato com o mar h um foco no ps da Toki em contato com as guas do oceano pois so atravs deles que a conexo possvel. No campo da composio a autora quase sempre desenha essas cenas quadro a quadro como se mimetizassem o movimento das ondas gradativo e gradual. Diferentemente das cenas em que h uma conexo com o Outro nesses casos o lao com os amigos e pessoas prximas pelo dar de mos. Uma parte fundamental da histria so os laos que a Toki forma ao longo da narrativa e como a ajudam a lidar com toda a problemtica. Como dito a nossa protagonista salva quatro anos atrs por um indivduo no identificado no sabe se um sereiano ou no aps isso de volta cidade Tokiko procura por respostas como tambm agradecer. Este momento fundamental na trama no apenas por dar incio a jornada como tambm enquadrar a importncia e a necessidade do auxlio do Outro. Nesse sentido h uma coleo de momentos nos quais os personagem seguram as mos do Outro tanto quando pedem alguma ajuda quanto oferecem na ocasio em que o pai de Toki a pede para ir cidade natal da me ele est agachando segurando as mos da filha. O segurar de mos recebe uma ateno mpar no decorrer da quadrinizao seja em uma pgina dupla ou em um lugar de destaque ocupando boa parte do espao. H uma espcie de quebra no ordenamento dos quadros que quase sempre so pequenos e cadenciados. Com isso se os ps so o meio pelo qual Tokiko estabelece a conexo com o mar isto com si mesma as mos a conectam ao Outro. Referncias bibliogrficas: Okano Michiko. Maa esttica do entre. Revista USP 100 2014: 150164. Okano Michiko. Ma: EntreEspao da Arte e Comunicao no Japo. So Paulo Annablume 2012.
75 /100
6 out of 9 users liked this review